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Arquivo para junho, 2023

Como escrever crônicas

Blog - Como escrever crônicas

Uma delícia de ler, mais gostosa ainda de escrever, a crônica cativa quem dela se aproxima. Talvez porque tenha um pouco de jornalismo, trazendo o frescor das notícias recentes ou nem tanto, mas que ainda causam furor nas rodinhas de amigos ou, mais modernamente, nas “redinhas” (de amigos) sociais. Talvez porque tenha um pouco de arte literária, permitindo vez ou outra uma licença poética que ajuda a extravasar, com liberdade de expressão, emoções e subjetivismos. 

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Mas a amplitude da crônica ainda é mais surpreendente, abarcando filosofias, reflexões, memórias, juntando recortes de realidade com contação de histórias. Por isso, às vezes até se parece com uma breve narrativa e deixa os leitores na dúvida. Seria crônica ou conto? Se é de fato concisa e naturalmente saborosa, com toques de humor e uma ou várias pitadas de ironia, será crônica, com certeza.

Essa mistura, esse suingue, esse gingado de possibilidades textuais têm tudo a ver com o jeito de ser do brasileiro. Essa combinação eclética impulsiona a crônica, que evolui, solar, pelas páginas de jornais, revistas e livros de coletâneas, saindo-se bem tanto no impresso quanto no digital. E bons autores de crônicas estão sempre surgindo, inspirados nos mestres que atravessam o tempo, mantendo o frescor da atualidade, e nos encantam até hoje: Rubem Braga, Lygia Fagundes Telles, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Marina Colasanti… Tear 8

Para quem gosta do gênero e quer arriscar uns passos nesse volteio literário, aqui vão algumas dicas:

  1. Escolha um tema que chame a sua atenção. Uma notícia interessante de jornal, algo que viu em um portal de internet, que soube pela rede social. Um fato engraçado, dramático, curioso, perturbador que tenha ocorrido na rua onde mora, na vizinhança, na família, em uma visita, nas férias, no passeio de fim de semana. Algo que o surpreendeu em seus sonhos, que ativou suas lembranças… Um tema, cujas razões de escolha estarão, com certeza, refletidas no texto.
  2. Defina o jeito como quer falar desse tema. Você gostaria de fazer uma reflexão? De contar uma história? De expressar seus sentimentos, como em um desabafo? De rir e fazer rir sobre o assunto? De ironizar a forma como as pessoas, você inclusive, se relacionam com o tema? De retratar uma situação que revele objetiva ou subjetivamente a maneira como você vê e entende o assunto? De puxar o fio da memória e recordar, filosofar, desenrolar enfim o novelo de uma lembrança?
  3. Escreva de forma simples. Não se trata aqui de ser raso, superficial ou de escrever de forma incorreta – isso, jamais! –, mas sim de ser sincero, sem preciosismos ou rebuscamentos, que muitas vezes encobrem a voz do coração. A crônica é o mais autoral dos textos, no qual você se desnuda sem intenção de chocar ou seduzir, mas de compartilhar com os leitores suas emoções, compreensões ou incompreensões, sua visão de mundo. Nada mais moderno do que esse compartilhamento.
  4. Escolha a forma mais adequada ao conteúdo sobre o qual quer cronicar (sim, o verbo “cronicar” existe e significa, naturalmente, “escrever crônicas”). Pode ser em forma de diálogos (como algumas crônicas de Luis Fernando Veríssimo); de prosa extensa ou mais concisa (mas sempre uma boa prosa como nas de Machado de Assis ou Lima Barreto); de relato, carta, diário (como a de Pero Vaz de Caminha, sobre o achamento de um novo mundo); de texto poético, emocional ou dramático (como as de Cecília Meireles e de Clarice Lispector); de narrativa, história, fábula (imperdíveis as de Millôr Fernandes)…
  5. Siga a lógica do texto. Nem sempre nos lembramos do óbvio, mas como disse o Rei ao Coelho, no livro de Alice (“Alice no País das Maravilhas”): “Comece pelo começo e siga até o fim; daí, pare.” O recado é: seja objetivo, claro e coerente, apresentando seu tema no começo (sobre o que estou falando), desenvolvendo as ideias relacionadas ao tema no meio (como tudo aconteceu; como tudo me afeta ou aos outros ou ao mundo), e chegando a uma conclusão (que pode ser a de não ter conclusão alguma).

Tear 3O importante é se divertir no processo, agradando a si mesmo e, consequentemente, agradando o leitor. E é com humor que Rubem Braga (1913-1990), nosso maior mestre na arte de cronicar, brincando com a ideia das doenças que afetam nossa saúde, define o gênero: “Se não é aguda, é crônica.”

Para finalizar, exemplo de uma crônica exemplar:

A Palavra

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito como não imaginar que, sem querer, feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de mágoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta.

Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco, a sentir uma vontade de fazer alguma coisa boa.

Agora sei que outro dia eu disse uma palavra que fez bem a alguém. Nunca saberei que palavra foi; deve ter sido alguma frase espontânea e distraída que eu disse com naturalidade porque senti no momento – e depois esqueci.

Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário, e o canário não cantava. Deram-lhe receitas para fazer o canário cantar; que falasse com ele, cantarolasse, batesse alguma coisa ao piano; que pusesse a gaiola perto quando trabalhasse em sua máquina de costura; que arranjasse para lhe fazer companhia, algum tempo, outro canário cantador; até mesmo que ligasse o rádio um pouco alto durante uma transmissão de jogo de futebol… Mas o canário não cantava.

Um dia a minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven – o canário começou a cantar alegremente. Haveria alguma secreta ligação entre a alma do velho artista morto e o pequeno pássaro de ouro?

Alguma coisa que eu disse distraído – talvez palavras de algum poeta antigo – foi despertar melodias esquecidas dentro da alma de alguém. Foi como se a gente soubesse que de repente, num reino muito distante, uma princesa muito triste tivesse sorrido. E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças.”

Crônica de Rubem Braga, publicada no jornal O Globo, em 13 de novembro de 1959.

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